Existem muitos mitos relacionados a Grécia antiga, e um dos meus favoritos é dos deuses gêmeos Kronos e Kairós.
Na linhagem dos deuses, o primeiro de todos é Urano, que fecundou Gaia e deu origem a toda a criação e mais alguns deuses, incluindo os gêmeos Kairós e Kronos. Em seguida, Kronos engenhosamente assume o lugar do pai como senhor supremo e aprisiona o irmão, condenando-o a viver como humano para que não possa ameaçar sua soberania.
Tanto Kronos como Kairós são divindades relacionadas ao tempo. Kronos é o deus do tempo quantitativo e objetivo, enquanto seu irmão Kairós reina sobre o tempo qualitativo e subjetivo.
Uma leitura semiótica do mito nos trás à ideia de que o tempo (como o conhecemos hoje) fora uma das primeiras “coisas” ou noções percebidas/adquiridas pelos antigos. Também nos sugere que, ao “inventar” o tempo de relógio, ao criar o horário, assumindo a posição de Kronos, o homem comprimiu e restringiu Kairós. Porém, o homem não imaginava que sucumbiria diante do reinado de Kronos e seria escravizado por sua própria criação. Assim, na era contemporânea, nós ainda escravos, continuamos dizendo: “Não há tempo o bastante” apesar de nós mesmos termos inventado o tempo.
O tempo físico, ao contrário do que estamos acostumados a pensar, não é absoluto. O tempo físico, inclusive, não é o tipo mais primordial que existe. Caso fosse, Kronos não teria se preocupado em aprisionar seu irmão por sentir-se ameaçado por ele.
Experimentar o tempo em nossas vidas é algo que transcende o cronômetro do relógio. Nossas vidas não são puramente físicas. Qual a massa de um pensamento? Quantos joules tem uma ideia? Essas são perguntas que não podem ser respondidas pela física, e por isso existe aquilo que Aristóteles chamou de metafísica. Parte de nossas vidas é mental, e não podemos nos relacionar de modo puramente mental com um conceito de tempo meramente físico.
Em nossas infâncias, por exemplo, antes das aulas de física ou mesmo antes que aprendêssemos a saber as horas por meio de relógios, experimentávamos o tipo primordial de tempo, vivíamos sob o reinado afável de Kairós. Este é um deus bondoso que nos trata com carinho. Quem de nós é capaz de dizer que o tempo na infância passava depressa demais ou que não era suficiente para o que quer que fosse?
Nossos problemas com o tempo começam quando, por vontade própria, deixamos o conforto dos domínios de Kairós para nos aventurarmos sob a tirania de Kronos. Nossa vida adulta ainda segue o legado de Newton, que reafirmou a auto-escravização proposta pelos primeiros súditos de Kronos.
Quando vivi meu período sabático, nos primeiros 9 meses simplesmente não tinha relógio. Minha sensação nos primeiros dias, ainda com ranços do domínio de Kronos, foi que cada dia se multiplicara por 3; mas na verdade apenas passei a me relacionar com o tempo de maneira diferente. Redescobri Kairós. Pude me dedicar a tudo que tinha desejo, como alfabetizar alguns, escrever, a leitura, reflexão, pratica de esportes, auxílio na limpeza do local, e nunca me faltava tempo. Durante este período, nunca me faltou tempo. Muito pelo contrário, fazia tudo o que queria e ainda sobrava tempo.
Nós devemos nos libertar do domínio de Kronos. É preciso que o façamos para atingir uma vida saudável. Os relógios de pulso devem ser trocados por relógios internos que marcam o tempo conforme nossas necessidades, pois estas fazem com que o tempo se expanda ou se contraia. Nossos relógios internos são a única maneira de nos relacionarmos com Kairós.
“Tome cuidado com o vazio de uma vida cheia demais”
– Sócrates